outubro 15, 2006

Para rever...


"Elogio do Amor"


"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas.
(...)

Parece-me que já ninguem se apaixona de verdade. Já ninguem quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razao.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito.

Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e há mínima merdinha entram logo em "diálogo".
O amor passou a ser passível de ser combinado.

Os amantes tornaram-se sócios.
Reunem-se, discutem problemas, tomam decisoes.
O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecologica de camaradagem.
A paixão, que devia ser desmedida, e na medida do possível.
O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estupido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de servico.

Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, sao uma raca de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananoides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.


Já ninguém se apaixona?
Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilibrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coracão e que nos canta no peito ao mesmo tempo?


O amor é uma coisa, a vida e outra.
O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá la um jeitinho sentimental".
(...)

O amor fechou a loja.
Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. E essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não para nos fazer felizes. Tanto pode como nao pode. Tanto faz. É uma questão de azar.
(...)

A vida às vezes mata o amor.
A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição.

Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. E por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra.

A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito dificil por muito desesperadamente. O coracao guarda o que se nos escapa das maos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - E o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. E sinal de amor puro não se perceber, amar é não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la tambem."

Miguel Esteves Cardoso

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